20/10/2020

Marxismo Cultural é uma Invenção Nazista

A FICÇÃO: "A Escola de Frankfurt dedicou-se explicitamente a destruir a cultura judaico-cristã e instaurar o marxismo cultural."

A REALIDADE: "São as próprias acusações contra a Escola de Frankfurt que ajudam a estruturar a conspiração do marxismo cultural."

    O dia 22 de julho inspira luto até hoje na Noruega. Foi nesta data, em 2011, que uma caminhonete com aproximadamente 1 tonelada de explosivos foi deixada em frente a um prédio de 17 andares em Oslo. Além de uma série de repartições públicas, o prédio abrigava o escritório do primeiro-ministro. Oito pessoas morreram no atentado. O país ainda tentava compreender com o que estava lidando quando um homem disfarçado de policial invadiu um acampamento de jovens do Arbeiderpartiet, o Partido dos Trabalhadores norueguês, e abriu fogo, matando mais 68 pessoas.
    O autor dos atentados, Anders Behring Breivik, divulgou um manifesto em que tentava justificar o injustificável. No texto, ele alertava para o marxismo cultural, que seria uma ameaça contra o cristianismo. Até aquele momento, o marxismo cultural era apenas mais uma alucinação no amplo cardápio conspiratório da extrema direita: insignificante demais para ser notada e inofensiva demais para ser combatida. Em 22 de julho de 2011, o mundo descobriu que, se toda teoria conspiratória é, antes de tudo, uma questão de fé, então toda a história da humanidade está aí para nos mostrar que a fé, além de mover montanhas, também é bem capaz de fazer jorrar rios de sangue.
    Depois da tragédia, nem Breivik nem o marxismo cultural deixaram de frequentar as manchetes. O primeiro, condenado e cumprindo sentença, voltou a ser notícia quando exigiu que o PlayStation 2 de sua cela fosse trocado pela versão mais recente do console. O segundo aparece com cada vez mais frequência em discursos políticos e até em obras de ficção. Invariavelmente, a imaginação de um marxismo cultural vem acompanhada de uma pulsão de
violência.
    Em 2014, enquanto Breivik tentava convencer seus carcereiros de que sua demanda imediata por um videogame de última geração constituía uma reivindicação válida e enquadrável no conceito de direitos humanos, um autor chamado William S. Lind publicava Victoria, uma história de ficção feita sob medida para gente como Breivik. Victoria conta a saga de personagens valentões que, unidos sob a bandeira do cristianismo, resolvem combater o crime em sua vizinhança. No decorrer das páginas, os justiceiros veem sua iniciativa crescer a ponto de resultar na criação de um exército cristão encarregado de defender os Estados Unidos de um governo corroído pela praga do marxismo cultural. Victoria, assim, se torna a visão de Lind para uma restauração dos Estados Unidos a suas origens culturais e raciais. É uma visão bem violenta: em determinado ponto da narrativa, os heróis de Lind chegam a esquartejar um professor. Lind encerra a cena assim: “Em menos de cinco minutos de berros, gritos e uivos, tudo acabou. O chão estava tomado pelas vísceras do marxismo cultural”.
    Identificado com o paleoconservadorismo, uma vertente conservadora radical concentrada no tradicionalismo e no anticomunismo, Lind é uma figura chave na conspiração do marxismo cultural. O atentado de 2011, cometido em nome da conspiração, não foi suficiente para fazê-lo desistir da ideia, como bem sugere a publicação do sangrento Victoria apenas três anos depois.
    Aqueles que, como Lind e Breivik, acreditam na conspiração do marxismo cultural, vivem convencidos de que a mídia e a cultura são controladas por agentes marxistas infiltrados. O cinema, a música, a televisão e a literatura estariam, graças à dedicação de tais agentes, separando o Ocidente de suas raízes culturais e religiosas. Como vimos anteriormente, tem sido comum, principalmente no Brasil, que marxismo cultural, Religião Biônica Mundial e
outras ficções se combinem em uma superteoria conspiratória, conforme definida por Michael Barkun.
    Como as ações de Breivik e as palavras de Lind indicam, o marxismo cultural é um componente especialmente tóxico dentro dessa superteoria conspiratória: muita violência já havia sido praticada em seu nome, antes mesmo do termo ser usado por alguns dos principais agentes políticos do governo brasileiro. Poderemos compreender a violência – o que não significa aceitá-la – se soubermos o que o tal marxismo cultural significa quando sai da boca de quem acredita nele. Para Breivik, por exemplo, o marxismo cultural é uma tentativa organizada e secreta de impor um conjunto de valores e crenças que ele julga completamente incompatível com suas convicções. Ele acredita que há uma conspiração global usando a mídia para normalizar o aborto e a pedofilia (frequentemente descrita como um ato praticado por homossexuais). Também acredita que o marxismo cultural coloca seu precioso cristianismo em risco; assim como todos os valores que fazem uma civilização ser digna do nome. É partindo dessa compreensão que Breivik olha ao seu redor e atribui ao marxismo
cultural todos os costumes que, por conservadorismo, ele rejeita. Vendo seu mundo ameaçado, Breivik mata dezenas de pessoas. Ao ser condenado, ele sorri para o juiz e faz a saudação nazista.
    O gesto de Breivik é revelador e nos ajuda a perceber a origem da teoria conspiratória do marxismo cultural. Na Alemanha dos anos 1930, falava-se em “bolchevismo cultural”. Segundo o partido nazista, o bolchevismo cultural constituía em uma tentativa de desgastar os valores tradicionais e, junto com eles, um regime que (supostamente) estava lá para defendê-los. Usando o bolchevismo cultural como desculpa, os nazistas perseguiram intelectuais e artistas – os movimentos modernistas, por exemplo, eram vistos como uma espécie de propaganda bolchevique infiltrada nas artes. Muitos dos filmes e obras de artes plásticas que conhecemos como representantes das vanguardas históricas e do Modernismo sobreviveram por um triz, sob a acusação de subversão.
    É dessa fonte que beberam ideólogos que, como William S. Lind, propagaram o medo do marxismo cultural. As semelhanças com o bolchevismo cultural e com todo o repertório de justificativas que viabilizaram o caráter persecutório e assassino do nazismo dificilmente seriam aceitas pelos que creem no marxismo cultural, mas a conspiração deixa rastros.
    Com frequência, os ideólogos apontam a Escola de Frankfurt como a fundadora da conspiração. A Escola de Frankfurt é um termo informal usado para designar pensadores afiliados ao Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt. O Instituto, vítima da perseguição nazista, precisou abandonar a Alemanha em 1933, estabelecendo-se primeiro em Genebra e depois em Nova York. O reestabelecimento formal da sede em Frankfurt veio
apenas em 1953. Esse histórico é o suficiente para alertar: o marxismo cultural contemporâneo quer a mesma coisa que o bolchevismo cultural dos nazistas queria. Suas vítimas, inclusive, são as mesmas.
    Quando a teoria da conspiração do marxismo cultural nos alerta que décadas de esforço da Escola de Frankfurt foram dedicadas explicitamente à destruição da cultura judaico-cristã, a única coisa que a difere de um nazista em sua luta contra o bolchevismo cultural é a identificação pontual da “cultura judaicocristã”. Aqui, o termo é cuidadosamente utilizado para que não lhe dediquem a pecha de antissemita. Uma artimanha esperta, mas um tanto manjada, a unidade cultural entre judeus e cristãos pode ser vista como absoluta, relativa ou até inexistente, conforme as conveniências políticas de cada época.
    Compreendendo as associações perigosas do marxismo cultural, o que nos resta saber é o que fazia então a Escola de Frankfurt, já que não tramava a dominação mundial via mídia e academia. Mais uma vez, a resposta está no contexto histórico: os intelectuais nela reunidos tinham diante de si a missão de compreender acontecimentos dramáticos e inéditos. O contexto social se transformava rapidamente pelo mundo. A Revolução Russa tinha acabado de estourar, em 1917. Os regimes fascistas estavam em ascensão, e paralelamente surgiam tecnologias de comunicação cada vez mais eficientes. Tudo isso tinha efeitos tremendos para a sociedade e para a cultura. Que efeitos seriam esses? Como a combinação desses eventos afetaria o mundo em longo prazo? Como pesquisadores, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Erich Fromm e Jürgen Habermas sentiam-se desafiados a elucidar essas e outras questões. No campo da comunicação, o trabalho dos pensadores é essencial: se há jornalista, publicitário ou relações públicas que não conheça A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, de Adorno e Horkheimer, é porque algo não saiu direito em sua formação. Nessa obra, por exemplo, nos é apresentado o conceito de “cultura de massa”, indispensável para compreender os efeitos das tecnologias comunicacionais que passamos a dominar naquela primeira metade do século
XX.
    É verdade que o marxismo está na base dos textos mais famosos associados à Escola de Frankfurt – e não há nada de errado nisso. O que uniu os pensadores de Frankfurt, em primeiro lugar, foi a rejeição ao marxismo panfletário dos partidos comunistas ortodoxos. Para eles, contudo, o marxismo era a caixa de ferramentas que continha os instrumentos metodológicos e analíticos adequados para as tarefas em questão. A força que aglutinou esses intelectuais, hoje acusados de tramar a dominação do mundo, foi justamente a percepção de que o marxismo é, antes de tudo, um método de análise da sociedade e da economia.
    E fazia todo o sentido usar o marxismo como ponto de partida para compreender a mercantilização da cultura e da arte, que era um fenômeno novo e um objeto de estudo fascinante para eles. O leitor não deve se escandalizar ao descobrir que hoje continuamos nos apoiando no grande legado da Escola de Frankfurt para compreender os efeitos sociais e culturais da internet. O que pode ser surpreendente é que, com frequência, seus textos sejam lidos com certa desconfiança pelo jovem estudante universitário. No contexto das novas
tecnologias, parece estranho que se fale, por exemplo, da Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, produção fundamental de Walter Benjamin. Esse texto fala sobre como nossa relação com a arte mudou a partir do momento em que pinturas, antes restritas a museus e galerias, passaram a ser reproduzidas em gravuras e fotografias. Mas, para quem chegou no mundo quando toda essa tecnologia já existia, a discussão pode parecer ultrapassada. Hoje é preciso fazer certo esforço para superar a sensação (também equivocada, diga-se de passagem) de que os textos da Escola de Frankfurt é que estão querendo recuperar um passado perdido. Isso é uma grande ironia, pois a conspiração do marxismo cultural ainda acredita que os frank-furtianos estivessem tentando corromper um mundo clássico e puro em nome de um futuro degenerado.
    Junto com muitas outras teorias da comunicação, anteriores e posteriores a ela, a Escola de Frankfurt continua sendo um dos temas de estudo de universidades mundo afora, e isso não tem nada a ver com marxismo cultural, nem mesmo com uma suposta defesa do marxismo. Nada disso significa que professores universitários estejam tramando a dominação do mundo. O professor universitário, coitado, mal controla a própria carga horária de aulas e ainda luta
para conseguir que a turma toda apenas leia o texto para a próxima semana.

PARA LER
Teoria crítica – ontem e hoje (Barbara Freitag, 1986)

Para conceber a Escola de Frankfurt como idealizadora de um plano de dominação global, basta uma frase. Para compreender integralmente do que ela trata, teríamos muito mais trabalho. Teríamos de passar pelas obras de Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, Max Horkheimer, Theodor Adorno e Walter Benjamin. Um ponto de partida adequado pode ser o
livro de Barbara Freitag. A socióloga iniciou seus estudos em 1962, com Adorno e Horkheimer. Nessa obra, ela nos mostra as bases das teorias críticas da ciência, da indústria cultural e do Estado, formuladas pelos teóricos de Frankfurt. Você pode discordar das teorias, pode até acusá-la de doutrinação, mas seria prudente conhecê-las.

Fonte: Texto retirado do livro Tudo que você precisou desaprender para ser um idiota, escrito pelo canal Meteoro Brasil e publicado pela Editora Planeta.

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